O Espirito Santo como tema central da Teologia.

Conflitos, perspectivas, desafios

 

 

Antonio Carlos de Melo Magalhães [1]

 

English Abstract

The HOLY SPIRIT AS A MAIN THEOLOGICAL ISSUE. CONFLICTS, PERSPECTIVES AND CHALLENGES.

Antonio Carlos de Melo

 

 

Antonio Carlos de Melo, who is Doctor in Theology and theological lecturer at Faculdade de Teologia da Universidade Metodista de São Paulo, presents an article emphasizing the Holy Spirit. His main idea is that the Holy Spirit is the central issue regarding theological thoughts. If we comprehend this truth, conflicts, perspectives and challenges for the present church will surround us.

 

Introdução

Falar do Espírito Santo hoje implica dialogar com experiências profundas nas comunidades cristãs e com as diversas formas de elaboração do discurso teológico atual, ou seja, com o método propriamente dito.

Este ensaio inclui a disposição de desenvolver tanto uma leitura teológica de variadas manifestações atribuídas à presença do Espírito Santo, como é o caso do pentecostalismo e do movimento carismático, quanto de repensar criticamente aspectos importantes da teologia cristã ocidental. Isto porque pressuponho para o desenvolvimento deste ensaio que a teologia cristã ocidental tem na teologia do Espírito Santo, numa verdadeira pneumatologia, sua principal lacuna. Faz-se mister, portanto, superar o papel marginal do Espírito na construção do método teológico. Esta lacuna é sentida de forma especial em nossos dias, visto que pela primeira vez na história do ocidente considerado cristão, movimentos que se remontam ao Espírito emergem como determinantes na reestruturação da igreja, na redefiniçao das práticas cristãs e no questionamento da interpretação teológica. Com isto não é defendido, de forma alguma, a ideia que os movimentos do Espírito são coisas recentes, se configurando numa novidade na história da Igreja. Pelo contrário, o presente texto parte do princípio que a experiência com o Espírito foi uma constante na história do cristianismo, sendo relegado, porém, a uma importância marginal no trabalho teológico. Muitas vezes tais experiências foram tidas como heréticas pela teologia oficial. Constatar que os atuais movimentos do Espírito nos desafiam à reformulação de nossa teologia, indica que, pela primeira vez na história do cristianismo, as experiências religiosas com o Espírito Santo se projetam como paradigmáticas. Isto significa uma mudança profunda para a igreja e a teologia. É impossível responder a este desafio com o antigo eixo hermenêutico, que chamo de cristológico-eclesiológico. Faz-se necessário interpretações teológicas que contemplem um novo eixo hermenêutico advindo de práticas cristãs e da real presença do Espírito na história da natureza e da sociedade. A este novo eixo chamo de pneumatológico-comunitário.

É importante nesta introdução pontuar o que se pretende alcançar com a discussão que se anuncia para este ensaio. Em primeiro lugar, constata-se um avanço espetacular do movimento carismático e do pentecostalismo e até não tem faltado as interpretações de cunho sociológico-antropológico que se articulam ou na direção das teorias da compensação, que veem o crescimento da religião associado a perdas materiais ou crises dos paradigmas, ou na direção de uma teoria crítica do mercado, que vê as religiões que crescem atualmente, que ameaçam o lugar das expressões tradicionais da legitimação religiosa da sociedade, como expressões do mercado neoliberal imposto como única saída para construção das sociedades humanas. Estas interpretações associam superprodução simbólica como compensação da subprodução econômica na vida de milhares de pessoas, sendo que uma das formas mais radicais desta compensação se manifestar se daria exatamente como alguns líderes religiosos se aproveitam disto para construírem seus impérios econômicos. A lógica subjacente a isto é que os chamados excluídos do mercado constroem a riqueza de alguns novos empresários da religião dentro deste mesmo mercado.

A teologia se contentou em circunscrever seu discurso, durante muito tempo, como segundo ato a estas leituras sociológico-antropológicas. Com isto ela não se permitiu fazer uma leitura teológica destes novos movimentos que, atualmente, são os que promovem as mudanças mais profundas na história do cristianismo latino-americano. A teologia repetiu esta interpretação numa linguagem que melhor representasse suas tradições estabelecidas e nisto ela contou com novos aliados para a perpetuação de suas conquistas, mas também de suas lacunas. De um lado, o nosso continente vive uma de suas mais sérias transformações no campo religioso, do outro, temos uma teologia que se contenta em repetir seu eixo tradicional cristológico-eclesiológico, agora também apoiada nas interpretações sociológico-antropológicas que acusam os novos movimentos religiosos de expressões da alienação e da expropriação do ser humano no nosso contexto. Mais uma vez corremos o risco de ficarmos fora daquilo que interessa às pessoas porque, de fato, transforma sua realidade de opressão e anuncia mundo novo e relações novas no seu cotidiano.

Um dos problemas centrais deste procedimento da teologia foi a sua falta de percepção para a forma como estes movimentos têm os seus alcances sociais, sua repercussão na vida concreta das pessoas. Uma outra falta de percepção se deu na leitura da linguagem religiosa, que não somente expressa opressões fundamentais, mas que cria mundos, renova vidas e reconstrói caminhos. A linguagem religiosa não é somente indicativa, ou seja, ela não somente aponta para opressões que deveriam ser solucionadas em outro plano prescrito pela racionalidade moderna, mas se transforma e cria novas relações, pois ela é uma linguagem que cumpre o que promete, realiza o que anuncia, presencializa o que deseja. Uma leitura que se contente com uma interpretação daquilo que determinados líderes fazem ou não fazem com o dinheiro arrecadado nas celebrações destes movimentos do Espírito está longe de perceber aquilo que acontece no processo de reconstrução de aspectos da cultura e de reelaboração dos símbolos e das práticas cristãs no nosso contexto.

Faz parte da ironia da história da teologia cristã, em especial do nosso continente, que tenhamos asseverado de diferentes formas que a opção especial do nosso fazer teológico foi e é pelos pobres, quando estes, porém, apresentam a sua forma muito concreta de elaborarem as imagens de Deus e definirem seu sentido de fé na vida, nós qualificamos sua religião de fuga, escapismo ou manipulação mercadológica. Aceitamos somente, então, os pobres feitos à nossa imagem e semelhança, os que lutam por processos de libertação a partir de caminhos que desenhamos e trilhas que abrimos.

A interpretação que o presente ensaio apresenta é de cunho teológico. O que se quer dizer, porém, com a expressão interpretação teológica? Parte-se aqui, como forma de introdução aquilo que será desenvolvido ao longo destas páginas, de um conceito minimalista de teologia entendida como fala discursivo-narrativa sobre e em Deus. Como fala discursiva contém aproximações reflexivas, a análise da fé, a categoria crítica de pensamento, o olhar disciplinado e aprendiz para o passado e a projeção fantasiosa para o futuro sem perder de vista a urgência das interpelações do presente. Teologia não é ciência ingênua, conhece bem as posturas éticas, assume compromissos com a história, redefine constantemente práticas visando uma maior eficácia das ações. Teologia é discurso de amor, por isto não é fala somente sobre Deus, pois não se fala somente a respeito de, mas, antes de tudo, na certeza de sua presença e movidos pelo seu amor que invade e refaz. Além do caráter discursivo, teologia é narrativa da fé, como forma de possibilitar novos anúncios de boas novas ou como forma de ler aquilo que está se anunciando no contexto onde é desenvolvida pelos diferentes grupos na sociedade e na igreja. Narrar é (re)construir a fé, jamais se contenta com a mera repetição das palavras. Narrar é contar de novo, é reinventar os caminhos da fé. Teologia é testemunho e o testemunho é a principal teologia das nossas comunidades de fé. Com este conceito de teologia em perspectiva é que a interpretação teológica será feita. A forma como serão feitos, concretamente, o diálogo com a tradição e o acompanhamento crítico das atuais práticas cristãs, as consequências para o tratamento dado a temas clássicos da teologia, serão percebidas no decorrer deste debate.

Com este conceito de teologia e a forma como este conceito é usado no desenvolvimento do presente ensaio, ficará claro às pessoas que lerem-no que a possível centralidade do Espírito Santo na teologia cristã atual significa uma alteração profunda na forma de elaboração do método teológico e de leitura de temas clássicos da teologia. Dois deles receberão uma atenção especial, que são a cristologia e a eclesiologia, pelo fato de que ambos os temas estão no centro daquilo que considero eixo hermenêutico normativo que vai sendo superado depois de quase dois mil anos de história do cristianismo no ocidente. É importante pontuar que esta mudança não vem de modismo teológico, mas daquilo que está acontecendo em diferentes comunidades de fé no nosso contexto.

A atenção especial voltada para a cristologia e a eclesiologia tem uma preocupação de dialogar com a herança teológica latino-americana recente que, em grande parte, foi construída a partir do eixo hermenêutico cristológico- eclesiológico. Até mesmo uma leitura superficial da teologia latino-americana nos últimos trinta anos evidenciará que os temas da imagem de Jesus Cristo e a compreensão de igreja definiram os caminhos da reflexão teológica libertadora. Com isto, constata-se uma grande criatividade cristológica de nossa teologia recente e significativos empreendimentos na área da eclesiologia. Isto nos fez apontar alternativas em relação à teologia europeia, mas nos colocou também dentro do modelo no qual o ocidente cristão tem elaborado o seu discurso teológico nos últimos dois mil anos. Inovamos naquilo que é considerado o normativo, sem questioná-lo profundamente. Uma pergunta que incomodou em todo o decorrer da escrita deste ensaio foi a pergunta de como melhor integrar a significativa contribuição que a Teologia da Libertação deu nos últimos anos, sem deixar de constatar e criticar seus limites. O diálogo com a pneumatologia, por uma imagem do Espírito Santo plausível para a nossa realidade objetiva, portanto, dialogar com a herança que recebemos humildemente de outros que abriram as picadas de nosso fazer teológico.

Parto, portanto, por um lado, de uma lacuna na teologia cristã ocidental: da falta de pneumatologias mais desenvolvidas, sendo isto uma questão dogmática e eclesiástica de central importância, e, por outro, de novas práticas ou possibilidades de novas práticas a partir da experiência com o Espírito Santo.

Duas observações, uma de ordem técnica, para a melhor compreensão da leitura: todas as traduções de citações de livros do alemão, inglês ou espanhol, ainda não traduzidos, são minhas. Havendo outras traduções das referidas citações que sejam do meu conhecimento serão mencionadas para verificação de leitores e leitoras.

Uma outra questão se relaciona com o projeto maior no qual este ensaio está inserido. Creio que há três formas básicas através das quais o sentido cristão de mundo e de Deus é reelaborado e reinterpretado no nosso continente de forma especial e que apresentam os maiores desafios para a teologia do nosso contexto. Uma forma é aquela que encontramos na forma como símbolos da fé cristã são reconstruídos e reinterpretados na literatura latino-americana. Sobre isto há um trabalho introdutório meu, que foi publicado pelas Edições Paulinas, em meados do ano 2000, com o título “Deus no Espelho das Palavras. Teologia e Literatura em diálogo”. Uma Segunda forma é esta que apresento neste momento, uma redefinição da fé cristã através de uma releitura do Espírito Santo na teologia e na prática das igrejas. Por fim, a terceira forma é analisar teologicamente os meios através do quais as culturas apresentam novos traços e rostos de nosso cristianismo latino-americano, sendo o tema do sincretismo, muito mais do que enculturação, a questão central a ser debatida teologicamente.

O presente trabalho é um segundo passo, portanto, numa trilogia que se propõe apresentar uma nova forma de fazer teologia sistemática no nosso contexto. Isto implica em atitudes e procedimentos metodológicos que representam ruptura com mediações e apropriação de temas que ainda estão à margem da construção do conhecimento teológico no nosso contexto.

 

  1. O Espírito Santo entre a marginalidade e o esquecimento

Toda pessoa que ainda concentra sua energia intelectual na pesquisa e análise dos aspectos dogmáticos da teologia cristã, da discussão em torno dos temas trinitários e daqueles que estão definidos como os verdadeiros fundamentos da fé cristã, perceberá sem grande esforço que ao Espírito Santo cabe ou o absoluto esquecimento ou um papel marginal como adendo de outros temas considerados mais importantes. É uma constante nos escritos de teologia sistemática, mesmo nos escritos voltados para a práxis cristã na sociedade e na igreja, que ao Espírito é dado o papel de figurante no sistema teológico, ou como confirmação subjetiva do ministério, vida e morte de Jesus Cristo ou, ainda, como adendo da doutrina da trindade. Há motivos para este papel ou, em alguns casos, para este esquecimento, que será objeto de discussão neste capítulo.

De forma nenhuma ao constatar este papel marginal do Espírito Santo na teologia pressupomos que isto é um problema que localizamos somente no passado. Esta é uma questão atual. Mesmo em teologias sistemáticas recentes, como é a de Pannenberg, ainda percebemos o mesmo problema. Tudo é discutido, debatido, desenvolvido para o edifício teológico que sustenta a fé e a estrutura das igrejas, Além de analisar este tipo de elaboração da sistemática teológica, apresento dois exemplos de autores no passado que colocaram o Espírito Santo como o centro do trabalho teológico e da prática da igreja e foram de forma violenta afastados e marginalizados pelas estruturas normativas da igreja. Entender melhor os pressupostos de tamanha rejeição é uma forma de perceber melhor os interstícios produtores de nossos sistemas de saber teológico.

É importante salientar aqui que quando falo de sistemas teológicos, incluo tanto aqueles de tendência mais liberal quanto aqueles de perfil mais conservador. Nisto, ambos comungam da mesma lacuna.

 

 

1.1. O Espírito: Confirmação subjetiva da revelação objetiva em Jesus Cristo

Esta é uma forma que se acrisolou dentro da teologia ocidental, sendo defendida tanto por católicos quanto por teólogos protestantes da vanguarda teológica. Tomo, como exemplo desta forma de estabelecer os critérios para o desenvolvimento da dogmática, um texto de Karl Barth: “... por isto é a cristologia a pedra de toque de todo conhecimento de Deus no sentido cristão e, de forma resumida, a pedra de toque de toda teologia. ‘Diz-me como é tua cristologia e te direi quem és’. Neste ponto se bifurca o caminho e se determina a relação entre o conhecimento de Deus e o do homem; entre a revelação e razão; evangelho e lei; verdade divina e verdade humana; o externo e o interno; a teologia e a política.”[2]  Neste livro, do qual esta citação é extraída, Karl Barth faz um comentário da confissão de fé da igreja. Reserva 116 páginas para falar de Jesus Cristo e 5 páginas para interpretar a obra do Espírito Santo. Nisto ele segue a própria dogmática de confissão e o papel que o Espírito Santo tem dentro da confissão de fé. Mais importante do que o número de páginas destinado a cada um dos temas da confissão de fé da igreja, é importante constatar a forma como os papeis e os matizes da função de Jesus Cristo são interpretados. Barth constata inicialmente na sua interpretação, que é na Palavra da ação, ou seja, no Filho, em Jesus Cristo, que se encerra tanto a obra do Pai, entendida como condição prévia e base do projeto cristológico, quanto a obra do Espírito, entendida como consequência e prolongamento daquilo que Cristo veio fazer. Cristo é o centro do credo apostólico, da confissão de fé, das declarações centrais da igreja na sua história, pois “tudo quanto se diz acerca de Deus Pai e de Deus Espírito Santo, há que se entender como expressão complementaria do que confessa o centro do credo”. [3]

Neste sentido, o teólogo da Basileia segue o roteiro conhecido da teologia ocidental, reservando capítulos para a descrição dos diferentes aspectos da obra e ministério de Jesus Cristo. Esta forma cristocêntrica de pensar teologicamente tem consequências em várias direções para a reflexão sobre os fundamentos da fé da igreja. Uma das mais significativas expressões desta forma do pensar teológico é a maneira como a Bíblia hebraica é entendida a partir da cristologia. Para Barth, o nome de Jesus e o título de Cristo manifestam a eleição, a pessoa e a obra do ser humano por meio do qual a missão profética, sacerdotal e régia do povo de Israel foi revelada e cabalmente cumprida. Esta consequência direta para a compreensão da tradição judaica e dos textos da Bíblia hebraica representa uma das mais antigas expressões do cristocentrismo cristão. Com isto, tudo o que foi considerado texto fundamental e normativo de uma religião, no caso da judaica, passa a ser texto preparatório e relativo em relação à ação de Deus em Jesus Cristo.

Se a primeira grande consequência do cristocentrismo na teologia se voltou para uma relativização da religião judaica e de sua Escritura, a segunda significativa influência se dá em relação a qualquer tentativa de outra religião ou mediação apresentar um acesso a Deus que encontre legitimidade junto à teologia cristã, pois para Barth, a revelação de Deus em Jesus Cristo é exclusiva e tão profunda que este ser humano eleito não é distinto de Deus, é, de fato, o único filho de Deus, sendo Deus mesmo singular que vive por si mesmo e de si mesmo. Jesus Cristo é graça e verdade em pessoa e o verdadeiro mediador entre Deus e os seres humanos. Desta forma, possíveis manifestações outras do sagrado na vida, de Deus na existência, deverão passar pelo crivo de uma cristologia que pressupõe que não há nada de novo a ser dito que já não tenha acontecido e sido anunciado em Jesus Cristo.

Se no primeiro passo da cristologia encontramos uma relativização da religião que oferece boa parte de sua estrutura discursiva e compreensão de Deus, e no segundo momento há um distanciamento em relação a outras mediações do sagrado na vida, a terceira consequência da cristologia se volta para a vida do ser humano e da igreja, pois Barth, seguindo o modelo ocidental do fazer teológico, defende que a confissão do senhorio de Jesus Cristo implica dizer que o Filho único de Deus intercede por todos, os quais, por sua vez, estão com seu destino marcado pela atitude que nutrem em relação a este único Filho de Deus. Com isto, o ser humano é buscado e achado por Deus em Jesus Cristo. Isto é ato de misericórdia, que se revela, porém, também na exclusão de qualquer outra possibilidade do ser humano ser buscado e achado por Deus: “A mesma misericórdia exclui o direito de outros senhores de intervir em nossa vida e torna impossível a implantação de outra instância junto a de Cristo e de outro senhor ao Senhor, assim como se torna impossível também outra obediência que não seja devida a Cristo.”[4]

Esta forma de pensar se completa nos comentários que Barth faz do nascimento, do sofrimento, da morte e ressurreição de Jesus Cristo. Mesmo destacando as contingências históricas nas quais Jesus estava envolvido, para Barth o mais importante é o caráter exemplar e paradigmático da cristologia para a compreensão de Deus na história humana. Isto culmina no papel de Jesus Cristo como juiz da história. “A lembrança que a igreja guarda é também sua esperança, e sua mensagem para o mundo é também a esperança do mundo. Porque Jesus Cristo, de cuja palavra e obra provem a igreja de forma consciente, e o mundo, sem esta consciência, é o mesmo que está vindo ao encontro da igreja e do mundo, como meta do tempo que marcha até o seu fim; Jesus Cristo vem para fazer visível definitivamente e para todos a decisão que nele se corporificou: a graça e o Reino de Deus como medida com que estão medidas a humanidade em geral e cada existência humana em particular”.[5]

Em Jesus Cristo são julgados o papel da religião do passado (judaísmo), possíveis outras mediações de Deus na história (outras religiões), a fidelidade da igreja, a existência individual e o sentido último da história humana.

Mas como entendeu Barth o papel do Espírito Santo para a teologia, a fé e a missão da igreja nas 5 páginas que ele reserva no seu comentário ao credo? O teólogo mesmo responde quando afirma: “Todo ser humano que está unido com Jesus Cristo de maneira que possui a liberdade de reconhecer sua palavra como dirigida a ele mesmo e sua obra para de, e assim mesmo possui a liberdade de reconhecer também a mensagem de Cristo como uma missão que ele mesmo há de cumprir; todo ser humano que reconhece isto e aquilo e que, de sua parte, também espera o melhor para os demais seres humanos, o reconhece e espera indubitavelmente em virtude de sua própria experiência e ação humanas, mas não em virtude de sua capacidade, decisão e esforços humanos, antes unicamente baseando-se no dom livre de Deus, dom com o qual, precisamente, lhe é outorgado tudo o que foi indicado. O Espírito Santo é Deus manifestado nesse dom e nesta entrega do ser humano”.[6] Esta frase resume de forma marcante a interpretação do papel do Espírito Santo na teologia, no pensamento de Barth neste comentário ao credo. O Espírito não tem uma relação com a história de forma especial. Ele é a confirmação subjetiva, é dom, daquilo que está dito e anunciado na revelação de Deus em Jesus Cristo. Ele se encontra no campo da motivação religião, na produção de convicção interior, marcando a presença de Deus na atitude correta do cristão ante ao processo revelatório em Jesus Cristo. Esta certeza cabal da obra de Cristo na vida do cristão surge não como conquista humana, mas como dom divino no Espírito. Neste sentido é uma obra mais oculta, visto que se confirma na consciência humana e na motivação para a defesa da fé. Jesus Cristo e o Espírito Santo são inseparáveis porque o primeiro estabelece a plataforma da ação do segundo, e este opera para a ratificação interior daquilo que de forma objetiva se revelou no primeiro.

 

 

1.2. O Espírito substituído pela igreja e sem função no processo revelatório

Seria equivocado pensar que este é um problema que expressa somente uma marca da teologia protestante. A teologia católica também reflete o cristocentrismo ocidental e faz da discussão trinitária, na verdade, um debate cristológico. Em livro publicado recentemente no Brasil com artigos de renomados teólogos católicos, com a proposta de apresentar os últimos desenvolvimentos na teologia católica pós Vaticano II[7], constata- se a ausência do Espírito Santo como tema da reflexão teológica católica. Isto não quer dizer que autores católicos não tenham publicado livros sobre o Espírito Santo. O que se constata é que em todos os livros considerados ou representantes da vanguarda teológica católica ou com o propósito de explicar ao mundo contemporâneo os fundamentos da fé católica, não há uma discussão sobre a pneumatologia. Nestes dois volumes que uso como exemplo, os autores caminham pelas discussões consideradas referenciais para a elaboração do método e do debate teológicos. Depois de discussão introdutória sobre as tarefas e os métodos da teologia sistemática e ensaios sobre fé e revelação, Deus, a criação e Jesus Cristo, no primeiro volume, parte-se para o debate sobre a igreja, o pecado e a graça, os Santos e Maria, concluindo com ensaios sobre os sacramentos, no segundo volume. O que mais chama a atenção é que o Espírito Santo não está presente nem sequer na atualização do ministério e da missão de Jesus Cristo no mundo. Esta ausência se evidencia quando da explicação dada por David Tracy sobre a forma cristã de compreender Deus: “Os cristãos, enquanto cristãos, compreendem quem Deus é, primeira e fundamentalmente, em e através de sua experiência e compreensão de Jesus Cristo. Os cristãos descobrem essa experiência e compreensão mediada para eles em Palavra e Sacramento através da mediação primária da tradição eclesial.”[8]

O ensaio de Tracy indica que a obra do Espírito Santo se torna até mesmo dispensável pelo fato de que a missão de Jesus Cristo e o processo revelatório que nele é realizado e desencadeado se atualiza pela Palavra e pelo Sacramento, funções precípuas da igreja.

Mesmo que seja asseverado dogmaticamente que o Espírito age por meio da igreja, há uma forte tendência na teologia católica de tornar a própria presença e existência da igreja como continuação e extensão do ministério de Jesus Cristo no mundo. Sabemos que esta compreensão tem toda uma tradição atrás de si de grande riqueza e alcance teológicos. A questão não é questionar a relação entre Cristo e a sua igreja, algo inegável para a teologia, mas inquirir se os caminhos encontrados para esta associação não escondem elementos fundamentais para o aprofundamento da fé cristã no mundo.

A ideia de que a objetividade do processo revelatório de Deus em Jesus Cristo se prolonga na objetividade do processo revelatório na igreja como Sacramento da salvação, pode servir de impedimento para uma reflexão mais aguçada sobre o papel do Espírito dentro do processo revelatório, podendo tal atitude desembocar na completa marginalidade do Espírito Santo no que tange à missão da igreja no mundo e da construção de novos sentidos para a história humana. O Espírito Santo surge, quando muito, como sujeito abscôndito, como ação nos bastidores da real cena desempenhada pela igreja de Cristo no mundo.

Se na teologia protestante o perigo para a compreensão do papel do Espírito Santo é de reduzi-lo ao foro íntimo das motivações religiosas corretas, no catolicismo o maior perigo é de uma institucionalização tal da igreja que ela pode abrir mão dos dons que a formam e se concentrar nas funções eclesiásticas que a constroem. Ela não poderá ser mais uma igreja impulsionada pelos carismas como doação do Espírito para a estruturação e dinâmica da igreja no mundo.

A teologia protestante erra por privatizar o Espírito e torná-lo elemento na construção da convicção interior do protestantismo. A teologia católica pode usurpar o papel do Espírito ao abrir mão dele para colocar a estrutura eclesiástica como continuação principal do ministério de Cristo.

 

 

 

 1.3. Causas da marginalidade do Espírito dentro da teologia ocidental

Alguns motivos podem ser assinalados neste primeiro capítulo, mesmo que não se queira dizer com isto que todas as teologias ocidentais mantiveram o Espírito no exílio do seu discurso. O que se assevera é que as teologias ocidentais que se tornaram em maior ou menor grau paradigmáticas e normativas, incluindo as declarações do credo, importantes sistemas teológicos e tratados dogmáticos considerados referenciais, tornaram a pneumatologia um adendo do pensamento teológico. Isto se nota até mesmo na forma como algumas teologias foram consideradas marginais. Muitas vezes, estas eram teologias voltadas para uma compreensão do Espírito como motivo maior da missão da igreja, acompanhadas de experiências extáticas e marcadas por práticas eclesiásticas que lembrariam algumas das expressões da ação do Espírito nas comunidades e práticas também consideradas marginais e perigosas por algumas teologias normativas de nossos dias. Vejamos, portanto, alguns dos motivos para a marginalidade do Espírito na reflexão teológica ocidental.

Um motivo inegável é de cunho histórico-textual. Isto porque parte dos textos que encontramos no Novo Testamento sobre o Espírito e sua ação na igreja é usada contra a própria dinâmica e alcance desta ação. Um bom exemplo disto é que parte da argumentação paulina, na Carta aos Coríntios, desenvolvida para fundamentar a diversidade dos carismas e, por conseguinte, da dinâmica do Corpo de Cristo, é usada para centralizar o discurso em torno da unidade estrutural e definida a partir dos ditames e dos interesses da institucionalidade da igreja. No uso de textos do Novo Testamento referentes ao Espírito Santo não foram mais importantes, portanto, a pluralidade, a dinâmica, o poder de sua ação, mas a estrutura que daí se crê resultar, as consequências institucionais desta pressuposta autoridade do Espírito para a reprodução das estruturas eclesiásticas. Há, portanto, um crescente uso de textos referentes à atuação, alcance e poder do Espírito, que em vez de elucidar a razão desta ação e o perfil deste ministério, se torna uma forma de legitimar estruturas que são bastante estranhas aos testemunhos sobre a natureza da ação do Espírito nos escritos bíblicos. Se contra o Jesus de Nazaré, profeta, se criou uma figura de Cristo monacal e ditatorial, contra o Espírito se criou a frieza das estruturas eclesiásticas como mediação da suposta presença do Espírito na história.

Um outro motivo incontestável para a marginalidade do Espírito na reflexão teológica se origina do fato de que muitos movimentos considerados heréticos na história do cristianismo se apresentavam como movimentos desencadeados ou sedimentados pela ação do Espírito. Temos aqui uma questão histórico-interpretativa de fundo na história do cristianismo e a forma como a igreja sacralizou a normatividade e expurgou de seus círculos todo e qualquer movimento que não estivesse servindo diretamente aos seus interesses. A ação do Espírito tornou-se, portanto, uma ameaça ao destino do cristianismo. Isto coloca-nos diante de um fato impressionante: não houve um movimento dentro do cristianismo que conseguisse fazer do Espírito Santo o centro da reflexão teológica da igreja como estrutura e instituição. Isto foi provocando um trauma histórico dentro do cristianismo no que tange à presença do Espírito. Para ilustrar isto, transcrevo três testemunhos sobre o montanismo, movimento que teve como um de seus centros de interesse a ação do Espírito Santo.

O primeiro testemunho é de Eusébio:

“... Na Mísia, perto da Frígia, há uma localidade chamada Árdaba. Contam que ali Montano, levado pela ambição imoderada de ocupar o primeiro lugar, franqueou sua alma ao Espírito inimigo. Ele estava entre os recém-convertidos e, possuído pelo demônio, começou violenta e frequentemente a delirar, entrando em certo tipo de transe extático, proferindo coisas ininteligíveis e nunca ditas na Igreja, profetizando de modo contrário ao costume da Igreja, que tem sido transmitido pela tradição desde princípio.

Alguns, ouvindo suas extravagâncias, repreenderam-no como pessoa dominada por um demônio... tendo presentes as advertências do Senhor que nos exortam a vigiar contra os falsos profetas. Mas outros, arrebatados e sobremaneira exultantes, presumiram possuir o Espírito Santo e o Dom de profecia.

... Suscitou também a duas mulherzinhas, enchendo-as do espírito maligno, de tal modo que começaram a falar irresponsavelmente coisas absurdas e estranhas... Tais pessoas, sob a influência de tal espírito, blasfemaram contra a Igreja Católica, porquanto essa não dava entrada nem crédito a espíritos pseudoproféticos.

Por causa deste assunto, repetidas vezes reuniram-se em diversos pontos da Ásia os fiéis asiáticos,... condenado a heresia e expulsando tais heresias da Igreja e da comunhão com os fiéis.”

O segundo testemunho é o de Hipólito:

“... Foram seduzidos por duas mulheres, Priscila e Maximila, tidas por profetisas e habitáculos do Espírito Santo... A essas mulheres enalteciam, colocando-as acima dos apóstolos e de todo carisma; não faltou quem afirmasse que havia nelas algo superior ao Cristo. Eles, porém, concordaram com a Igreja em reconhecer o Pai do universo como sendo o Deus e Criador de todas as coisas, e que o Evangelho testifica de Cristo. Mas introduziram novidades na forma de jejuns, festas, abstinências, dietas de rabanetes, deixando-se levar pela autoridade dessas mulheres.”

O terceiro testemunho é de Tertuliano, depois de se tornar montanista:

“Temos entre nós uma irmã favorecida com dons de revelação que ela manifesta na igreja, mediante visões extáticas no Espírito, durante os ofícios do domingo... Terminado o culto e despedido o povo, costuma relatar-nos suas visões...”.[9]

Estes testemunhos, os dois primeiros contra, o terceiro depois de uma de adesão ao montanismo, revelam aspectos de práticas que paulatinamente passaram a ser consideradas perigosas pela estrutura da igreja, consideravelmente cristalizada já nessa época. É importante notar que algumas manifestações da experiência que Montano e as “mulherzinhas” apresentavam possuem características que lembram sinais e expressões de fé encontrados na história do cristianismo, incluindo nossa história recente. Algumas dessas manifestações eram relacionadas ao demônio ou à experiência extática, do estar absolutamente fora de si. A pregação tanto de Montano quanto das mulheres passa por outros canais que não o da autoridade prescrita pela tradição e pelas normas estabelecidas. Muito mais do que ser simplesmente diferente e exótico, em alguns momentos, as práticas advindas das experiências das “mulherzinhas” confrontavam diretamente certas instâncias da autoridade da Igreja. Se a voz de Eusébio, como historiador da Igreja e favorável à tradição estabelecida, ressalta experiências do montanismo como objeto da repreensão e da acusação, deixa entender que outros entendiam estas experiências como manifestação visível da ação do Espírito Santo. O relato de Eusébio é paradigmático para entender a forma como as manifestações extáticas e o exercício de certos dons espirituais foram interpretados na história das igrejas cristão. Enquanto grupos se levantam e entendem sua ação em virtude de um mover do Espírito, normalmente a interpretação da hierarquia terá a tendência de excluir e acusar esta experiência de enganosa e retrato da balbúrdia e do desequilíbrio.

Na acusação de Hipólito, o que fica evidente é a força que as mulheres Priscila e Maximila tinham no exercício de uma liderança que se dava pela via carismática e não pela ordenação formal dentro das estruturas de poder eclesiástico. Mesmo se tivessem tentado esta via, teriam fracassado visto que se há algo que faz parte de longos e, muitas vezes aparentemente, infindáveis anos decorridos no poder eclesiástico, é a dificuldade, em muitos casos a impossibilidade, para que mulheres fossem aceitas plenamente no exercício do sacerdócio. Nesta época, o sacerdócio era algo destinado somente aos homens. Quando mulheres, tomadas pelo Espírito, desenvolvem uma liderança eficaz e empolgante pela via carismática, logo foram difamadas e marginalizadas. Hipólito reconhece que elas também confessavam Deus e assumiam para si o testemunho de Cristo. Mesmo assim, as novidades que elas incluíram nas festas cristãs foram rechaçadas. Fica evidente, porém, que a autoridade que as mulheres tinham era assegurada diretamente pelas comunidades nas quais elas atuavam. Se as estruturas da igreja não permitiam o exercício de seu ministério de pregação e liderança, as comunidades cristãs sob sua liderança celebravam a capacidade destas mulheres de pregar, dirigir, orientar e animar a caminhada do povo de Deus. Faz parte da liderança carismática um certo exercício de “sedução” diante dos fiéis. Se há um tipo de liderança que se constrói a partir de elementos normativos da tradição, como são o sacerdócio ordenado, a autoridade reconhecida etc., o caminho carismático se dá pelo ímpeto e criatividade da presença, pela vida repleta de energia e dedicação, de visões de mundo novo e não de repetição daquilo que já está convencionado. Estas mulheres e outras no montanismo agiram no poder do Espírito, e nisto tiveram sua liderança legitimadas e autorizadas pelas comunidades.

O terceiro testemunho, de Tertuliano após sua conversão ao montanismo, confirma o que foi dito. Com uma informação importante, a de que estas pregações e visões do Espírito se davam na convivência da comunidade e nas celebrações dos cultos. E o fato de que pessoas na história do cristianismo, como é o caso das duas mulheres, Priscila e Maximila, terem lançado mão de visões e sonhos para falar em nome de Deus, sempre se tornou algo desconfortável para a interpretação da teologia e do ensino oficiais da igreja, isto porque as visões e os sonhos colocam, ao lado do sacerdócio estabelecido, dos textos considerados norteadores e dos ensinos estabelecidos como normativos, um novo princípio de compreensão da revelação de Deus na história. Com sonhos e visões assume-se que Deus pode se revelar diretamente, sem a mediação única da tradição e do ensino oficial da igreja. Isto acarretou, amiúde, atitudes autoritárias por parte da igreja oficial. É estranho que sonhos e visões tenham sido plenamente aceitas nas narrativas bíblicas, mas sempre representaram polêmicas viscerais na história do cristianismo.

Em torno do debate sobre o montanismo, constamos um procedimento que se repetiu em vários momentos da história da igreja. Num capítulo destinado a isto, discutirei os matizes deste procedimento que foi se instaurando no pensamento cristão. Aqui vale a observação que o tratamento dado ao montanismo torna-se um modelo para a forma como a igreja oficial vai tratar diversas manifestações de experiências que se reportam ao Espírito. Entre outras coisas encontramos: a) a dificuldade de discernir entre a ação do Espírito e a do demônio; b) a revelação se dá sem mediações institucionais, mas através de mediadores eleitos pelo Espírito; c) a experiência extática como marca registrada, a presença do transe, de ser possuído por forças divinas; d) a dificuldade da igreja aceitar estes sinais como presença e manifestação de Deus em sua vida; e) a força que estas experiências tiveram para desencadear um movimento de grande repercussão a tal ponto que instâncias de poder da igreja reagiram com a excomunhão daqueles que passam a ser considerados heréticos.

 

  1. O Espírito Santo nas narrativas bíblicas. Representações e possibilidades de diálogo

Falar de narrativas é entrar num campo instigante e, ao mesmo tempo, perigoso. A teologia se apropriou, normalmente, da Bíblia como chave interpretativa da fé que as pessoas vivem em diferentes contextos e épocas. Desta forma, a autoridade da Bíblia deixou de ser testemunho de experiências com o processo revelatório de Deus e passou ao autoritarismo do texto, tendo a igreja passado a ver nele uma caixa de regras eternas e de palavras que poderiam ser usadas sem cuidados para fundamentar  a autoridade de  uma declaração qualquer da igreja.

 

O sola scriptura protestante tornou-se o uso do texto para argumentar, eliminar pessoas das comunidades cristãs, de expurgar pensamentos tidos como desviantes daquilo que a igreja cria ver nas narrativas bíblicas. Sempre foi uma apropriação baseada naquilo que a igreja já cria e defendia. O texto testemunhal deixou de ser palavra inovadora, surpreendente, para ser ofício da autoridade da igreja.

Não sigo este caminho ao falar de representações e possibilidades de diálogo com os textos bíblicos. A Bíblia é interpretada aqui como um dos elementos na construção do processo pedagógico da fé, sempre se renovando, refletindo sobre novas possibilidades e redirecionando caminhos. A Bíblia é interlocutora de um processo amplo da fé que inclui, entre outras coisas, as questões relacionadas ao novo contexto no qual se vive e a partir do qual se pergunta por Deus e sua presença no mundo. Por isto é importante encontrar nos textos bíblicos representações de experiências vividas, antes de vê-los como modelo de prática e autoridade para o comportamento. Se nos aproximamos assim da Bíblia, como experiências que tem o poder de, no processo de vida, nos interpelar e questionar e conosco dialogar, então ela pode nos ser muito útil para a construção constante de nossa fé no mundo. Isto implica também em sempre olhar suas ambiguidades e incertezas, as atrocidades que ali presente estão, bem como as barbáries que nela emergem.

Se tudo aquilo que está na Bíblia fosse, realmente, pregado dominicalmente, talvez muitas pessoas já teriam se afastado da fé cristã. É de uma forma, portanto, bastante cautelosa, que queremos dialogar com os textos bíblicos nesta parte e só será possível um diálogo inicial com o Primeiro Testamento.

Quando encontramos na Bíblia representações que interpelam, de fato, a nossa fé e nossa construção de sentido no mundo, então temos aí uma verdadeira experiência do texto como Escritura Sagrada. É nesta atitude que dialogamos com as narrativas bíblicas. 

Algo de fundamental alcance nesta questão é partir não de uma teologia sistemática harmônica sobre as diferentes manifestações e experiências do Espírito nas narrativas bíblicas, que se satisfaria em reduzir as diferenças a pontos comuns, estabelecendo um grande eixo hermenêutico para a leitura do Espírito na Bíblia, mas de uma atitude que conviva e reflita a complexidade e a multiplicidade destas manifestações e experiências. “... no momento em que seguimos os testemunhos destas múltiplas experiências e tentamos compreender seus contextos complexos, constatamos a partir de diferentes enfoques a rica realidade e vivacidade do Espírito Santo. Nós encontramos um contexto complexo de testemunhos, que, à primeira vista, não podem ser unidos, muito menos harmonizados ou sistematizados. Um pensamento que não seja sensível para as diferenças, que gostaria de diretamente dominar a totalidade e a plenitude do Espírito, permanecerá preso no numinoso, na declaração da experiência mística e em apelos morais globais. Somente a partir de suas diferenças, os testemunhos bíblicos sobre o Espírito se iluminam, fortalecem e esclarecem mutuamente. Desta forma, eles podem nos guiar para descobertas e experiências do Espírito de Deus também em nosso tempo e em nossa cultura.”[10]

 

2.1. No Primeiro Testamento

O Primeiro Testamento é, obviamente, um uso pensado para se referir ao chamado Antigo Testamento segundo a Bíblia cristã. A Bíblia hebraica, o Tanach, tem, como sabemos, outra forma de composição literária e teológica. A forma de começar é a mesma, tanto no Antigo Testamento quanto no Tanach, mas a forma de terminar é diferente. Uso o termo Primeiro Testamento porque creio que para a teologia cristã devemos tentar recuperar a profundidade da teologia judaica sem nos referirmos a este texto como antigo, velho. E, neste sentido, nosso procedimento é jesuânico-cristocêntrico: o Primeiro Testamento é tanto a nossa Bíblia quanto é o Segundo Testamento, entre outras coisas porque ele também foi a Bíblia para Jesus Cristo. O Tanach é, para cristãos e judeus, seu primeiro grande testamento da revelação de Deus na história da humanidade. Nada nele está simplesmente descartado ou ultrapassado por um Novo Testamento. Com o Primeiro Testamento, o Segundo pode dialogar, aprender, dilatar-se para outros contextos assim como o Primeiro também fez ao ser produzido em diálogo com a ação de Deus nas culturas de seu tempo.

No Primeiro Testamento devemos partir, realmente, da palavra hebraica ruáh, que foi traduzido para o grego como pneuma e para o latim spiritus. Se ruáh é um termo feminino, suas traduções para o grego e o latim assumiram o sentido de masculino e neutro, não sendo diferente no português. Pensando neste termo de forma mais direta, ele evoca uma série de associações como sopro (vital), vento (que sopra), ar (que se respira), ambiência vital na qual tudo acontece e se desenrola, entre outras coisas talvez menos importantes. O que vale destacar aqui é que quando falamos de vento ou ar, não é mais significativo o elemento em si, mas o poder que encontramos no vento que sopra, cujo ir e vir permanece mistério para a vida humana. Por outro lado, faz-se necessário evitar uma compreensão que sugira que associação ao vento, na questão do Espírito, signifique caos e confusão. Mesmo em textos como Gênesis 8.1; Êxodo 10.19, 15.10 e Números 11.31 fica claro que o vento não pode ser associado somente à destruição, mas também, e principalmente, à recriação. É preciso, portanto, focar bem nas manifestações do Espírito de Deus nas muitas experiências aparentemente ambíguas ou confusas encontradas nas narrativas bíblicas, pois isto nos ajudará a superar a visão do Espírito como algo indeterminado, caótico, confuso, no melhor dos casos, simplesmente como numinosum. As narrativas bíblicas não se prestam ao uso daqueles que querem associar ação do Espírito simplesmente à irracionalidade ou ao mistério indecifrável. O vento sopra não  somente para destruir, mas  para recriar,  juntar,

 

organizar, reconstruir a vida do povo e dar sentido mais profundo à história da natureza, algo, inclusive, que reflete, de forma central na Bíblia a manifestação do Espírito.

É importante desde o início notar que o termo não está de maneira alguma associada a quaisquer negação do corpo, mas é, justamente, sua vitalidade. Por isto, é necessário constatar que o Espírito de Deus está sempre associado no Primeiro Testamento à ação poderosa de Deus. Desde o âmbito da natureza, fazendo- a expressão das coisas amadas por Deus, até ações políticas na libertação do povo. O Espírito de Deus é a própria ação de Deus se tornando visível, dando sentido ao mundo, reorientando o povo para sua caminhada.[11]

 

O Espírito e a criação

Esta marca do Espírito representado como a própria ação de Deus, tem nas narrativas da criação e na forma como estas narrativas estão em profunda relação com a história do povo de Deus, um de seus mais profundos significados. Primeiramente, é importante pensar mais detidamente sobre a mensagem que advém das narrativas mitológico-simbólicas da criação. Elas propiciam grandes possibilidades de diálogo e de reflexão sobre o Espírito para os nossos dias. Para isto, antes de qualquer coisa, é importante, para evitar confusões, que há que se ter uma compreensão correta de mito, como elemento integrador da realidade social, como energia vital, mesmo sabendo que, didaticamente, haja necessidade, vez ou outra, de distinguir entre as funções mitológico-simbólicas e tecnológico-cognitivas de nossa consciência e do processo civilizatório. Sabemos que a vitalidade de uma cultura depende, em grande parte, da tentativa permanente de uma síntese última destes elementos divergentes, mesmo sabendo que isto nunca se dá de forma plena na produção cultural. Dizendo isto, é importante reconhecer que criação é uma categoria mítica e meio ambiente, matéria prima, etc. são aproximações advindas de compreensão tecnológico-cognitiva. Sabemos que grande parte da aproximação tecnológico-coginitiva que o ocidente desenvolveu em relação à criação, se deu pelo fato do ocidente cristão considerar que as próprias narrativas autorizariam uma atitude cada vez mais dominadora do ser humano como ápice da criação em relação ao restante daquilo que Deus criou. Nisto vemos que categorias míticas podem ser usadas tanto para processos libertários quanto para projetos de dominação. Fato é que foi sendo desenvolvido na história do ocidente um expressão de pensamento analítico baseado numa distinção radical entre sujeito e objeto, tendo o primeiro o domínio e o direito à expropriação do segundo. É importante reconhecer que o centro não se dá simplesmente porque o mundo ocidental foi se distanciando se suas raízes religiosas judaico-cristãs. O problema não reside, portanto, somente no fato da interpretação tecnológico-cognitiva ter se distanciado ou secularizado a interpretação mitológico-simbólica. A interpretação que a própria igreja deu ao papel do ser humano, colocando-o como centro dominador da criação, desempenhou um papel significativo na construção do imaginário ocidental em relação à natureza.[12]

É necessário, então, repensar esta forma de se aproximar do texto bíblico. Para isto, as narrativas apresentam algumas possibilidades de leitura. A primeira coisa é destacar novamente a importância de recuperarmos o sentido teológico de criação. “Criação é uma categoria mítica. Assim sendo, ela não pode ser confundida com termos como natureza ou universo. Nós podemos dominar a natureza e o espaço em torno de nossos planetas por uma análise científica e torna-los objetos de pesquisa sistemática. Mas criação é uma categoria que preserva a subjetividade inviolável de todas as coisas, seu valor único indestrutível e status primordial”.[13]

Este status primordial é representado em Gênesis 1, onde encontramos uma ideia fundamental de que Deus é criador, muito mais em princípio e não de que somente o no princípio ele foi criador. Sabemos que mesmo que constatemos diferenças significativas em relação a outros relatos míticos do contexto no qual o texto foi escrito, há semelhanças enormes. Podemos, por exemplo, constatar níveis diferentes entre a forma explícita através da qual divindades, segundo relatos paralelos, teriam criado o mundo e o ser humano. Em Gênesis 1, Deus cria, mas a criação não se dá através da relação sexual explícita como em outras narrativas é o caso. A criação não se torna divindade, mas é expressão cabal desta. De alguma forma ela permanece sob o cuidado e a admiração de Deus, sem representar uma série de entidades divinas. Enquanto os babilônios viam sol, lua, estrelas como divindades, no texto bíblico são vistos como luminárias.

Se isto é verdade, que há diferenças significativas, não podemos, por outro lado, cair no simplismo de afirmar que a Bíblia já apresenta um Espírito de demitologização, que representaria um estágio mais avançado do conhecimento de Deus. Muitas vezes, a interpretação da anunciada superioridade de Gênesis 1 em relação a outros textos míticos da criação, serve para mascarar, na verdade, um patriarcalismo que repousa na ideia de um Deus monárquico, transcendente e autoritário. Gênesis é eivado de linguagem mítica, e aí reside uma de suas mais expressivas mensagens. Algo que podemos constatar nesta narrativa mítica é que ela se encontra intimamente relacionada à própria história de Israel. É preciso acentuar, portanto, que o mito aqui está profundamente entrelaçado com a história do povo. Ao narrar a criação, o povo de Deus assume compromisso com a história.

A ruáh, o Espírito, Deus em ação, deve ser entendido dentro do processo criacional e das situações de libertação do povo de Deus, visto que criação e história estão, nas narrativas bíblicas, intimamente entrelaçadas. Ela, a ruáh, está na extensão da criação, porque ela é o próprio espaço no qual a criação é gerada e desenvolvida. Uma imagem mítica que representa muito bem isto é a expressão em Gênesis 1, de que “... mas a ruáh, o Espírito de Deus pairava sobre a face das aguas”. Deus não cria simplesmente o mundo do nada. O espaço no qual Deus cria é a própria presença da ruáh, do Espírito. “A vida de Deus, ruáh, é refletida no processo respiratório do cosmos”.[14] Neste sentido, a imagem mais correta para entender a criação de Deus não deveria ser a contraposição entre imanência e transcendência, mas de gravidez criacional, pois ela marca, ao mesmo tempo, tanto a pertença radical de Deus na sua criação e da criação em Deus quanto a diferença entre ambos. Na gravidez e na concepção mãe e bebê se pertencem intrinsecamente, são, porém, diferentes. Assim como a imanência pode criar um Deus sem subjetividade na história, a transcendência pode desfigurar Deus e torná-lo um motor imóvel, que cria para depois se afastar da criação. Deus não é a criação, é diferente, mas não pode ser experimentado, sentido e compreendido fora dela. Podemos dizer, em virtude disto, que a criação acontece não somente com algo vindo de Deus, mas no próprio Deus, pois o espaço no qual a criação acontece e se desenrola é o próprio Espírito de Deus, Através da energia do Espírito, o próprio Deus se torna entrelaçado com sua criação. Neste sentido, podemos dizer, segundo Calvino, que o Espírito é a fonte da vida, e torna vivo e com sentido tudo aquilo que pertence à criação. Tudo que existe e vive, manifesta a presença desta fonte divina da vida. Grande parte da falta de compromisso das igrejas com a chamada questão ecológica advém de uma visão bastante limitada da presença divina no mundo. No fundo, crê-se que a presença de Deus se dá somente na antropologia, no ser humano, e não há o menor sinal dela na sua criação. Criação, como espaço da presença da vida divina, se tornou sinônimo de antropologia.

O Espírito como real fonte da vida, e não somente como aquele que dá sentido ao ser humano nesta criação, como se a criação fosse um mero adendo divino para o domínio e controle do ser humano, coloca-nos diante de questões importantes para a reflexão teológica e a prática cristã no mundo. Isto implica em tornar o centro da criação não mais o ser humano, nem mesmo a diferença entre Deus e mundo, mas o conhecimento baseado na presença de Deus no mundo e a presença do mundo em Deus.[15] Muito mais importante que a distância de Deus para com o mundo, o que precisamos fazer é recuperar as diversas relações implícitas no processo criacional divino. Isto porque não podemos entender a criação, a partir das representações encontradas em Gênesis, baseando nossa reflexão simplesmente na contradição entre um Deus não mundano e um mundo não divino, mas deveríamos perceber que Deus cria o mundo a partir de sua própria existência e presença como Espírito, fonte de vida. Deus penetra com sua presença todo o universo. Neste sentido o símbolo da gravidez e concepção é o mais apropriado para falar da criação de Deus. Por uma felicidade do universo linguístico, as palavras útero e graça nas escrituras hebraicas tem a mesma raiz. Muito mais do que a imagem do produtor transcendente (teologia cristã patriarcal) ou do motor não móvel (filosofia patriarcal), a metáfora da gravidez parece direta o bastante. Isto não implicaria em panteísmo? Poderiam perguntar alguns. Não creio que aquilo que foi exposto antes neste capítulo sugira uma forma de panteísmo. Se isto tiver sido sugerido, ainda assim é preferível manter esta tensão e enfatizar que espaço e tempo precisam estar relacionados ao “espaço da onipresença de Deus” (Pannenberg).

 

Gêneses descreve ruáh como o útero materno da criação, o espaço original da vida. Tudo participa dele sem sê-lo, permanecendo a distinção. Além disto, Gênesis defende também que todos os tipos de vida que se manifestam em existência estão prontos e podem se expressar através de sua fertilidade. Há uma benção na fertilidade que se assegura através da estreita relação com a reciprocidade existente na vida do ecossistema.

O problema é que a teologia cristã, influenciada, neste ponto, por Agostinho, associou a sexualidade e, por conseguinte, a fertilidade, ao chamado pecado original. Ainda falamos com certa facilidade da fertilidade da natureza e nos alegramos com os seus bons frutos. É mais difícil, porém, falar da benção da fertilidade do ser humano. Em parte, isto se deve à concepção de Agostinho, pois para ele o instinto procriador é, precisamente, tanto a chave de acesso quanto o veículo de expressão do pecado original, ou seja, revelamos que carregamos esta mancha original nos momentos em que expressamos nossa sexualidade. Desta forma, uma benção original, a da fertilidade e todo sentido de vida a ela associada, tornou-se a maldição original. Esta se tornou uma das principais formas através das quais a sexualidade humana teve que deixar de ver o princípio criacional do Espírito como benção para si. A dicotomia posterior entre Espírito e corpo, prazer e realização, espiritualidade e sexualidade, é extensão desta falácia fundamental da teologia cristã em transformar benção original em maldição original. Esta dicotomia desembocou numa visão pessimista do próprio corpo humano e das expressões de sua sexualidade. O corpo tornou-se rapidamente objeto, mão de obra, força de trabalho, ou objeto manipulável para o prazer de uns poucos.[16] Amaldiçoamos o corpo, porque cremos que ele não está vinculado a nada que represente benção primordial do Espírito da criação e da criação no Espírito como espaço inicial do processo criacional de Deus. Tudo se torna separado, atomizado, marginalizado e ao se tornar assim, nas relações assimétricas entre corporeidade e espiritualidade, desvelamos um dos grandes traumas do ocidente: a visão que é possível crescer espiritualmente dominando, oprimindo e destruindo a criação divina da qual fazemos parte, porque nos baseamos na vil heresia de que podemos dissociar nossos conhecer da fonte essencial de nossas vidas, nossa racionalidade de nossa sensibilidade, nossa pesquisa de nossos afetos e preferências. A terra foi amaldiçoada por causa de nosso maior pecado: deixamos de vê-la como nossa fonte e casa e passamos a vê-la como espaço de expressão e concretização de nossa maldição. Transformamos uma benção primordial, a fertilidade e a sexualidade como símbolos da benção de estarmos no mundo, em objeto de nossos malefícios e pragas. Com isto perdemos muito do rumo de nossa existência como parte da criação de Deus. Sem uma recuperação da benção inicial não haverá paz na nossa relação com a criação, pois ela será somente natureza a ser expropriada e destruída.

 

O Espírito, libertação e sustentação em tempos difíceis

Uma representação contundente da ação do Espírito no Primeiro Testamento é aquela associada às libertações das aflições coletivas, na reconstrução da solidariedade e capacidade coletiva de ação do povo de Deus. Esta ação do Espírito no meio do povo, quando este se encontra oprimido e, aparentemente, sem poder e sem rumo, é descrita de forma bastante viva no Livro de Juízes, também chamado de o “Livro do Espírito” no Primeiro Testamento. É interessante acentuar que a ação do Espírito em Juízes não esta voltada tão somente para a escolha de heróis de libertação, como normalmente se pensa. Na verdade, os guerreiros juízes são muitas vezes desnudados também em suas fraquezas e idiossincrasias. O caso mais claro do papel relativo dos juízes é o de Gideão, que depois de ser apresentado como herói e libertador, logo em seguida é mostrado como alguém que constrói para si um altar em torno do qual o povo voltou a se prostituir. O centro dos textos nos quais a ação do Espírito se evidencia é que mais importante que os guerreiros, é a volta da coragem e a disposição de luta do povo que estão em jogo. Muito mais do que uma ação individual guerreira, o mais importante da ação do Espírito é a mudança de perspectiva na vida do povo. “O Espírito produz nova coesão no povo de Deus, liberta das consequências da impotência causada pelo pecado e reanima a vida oprimida.”[17] O aspecto miraculoso não é o mais importante, mas antes, a renovação da capacidade de ação e de coragem do povo. O Espírito levanta pessoas (juízes) para coordenar este processo (Juízes 3.7-11; 6.33-35; 11.14, 27-29; 12.7; I Sm 11.6ss). Antes de qualquer coisa são reconquistadas. Este é o centro da questão, visto que as falhas dos homens eleitos são logo mostradas nas narrativas bíblicas. O centro de tudo da ação do Espírito é o novo início da vida comunitária, as experiências do perdão, o levante dos oprimidos, a renovação dos poderes da vida. E isto ficará como marca da ação do Espírito nos textos bíblicos: quando o Espírito de Deus age, desconsolados recebem força, desamparados redescobrem poder, emudecidos falam e aqueles que são ensurdecidos pelas ideologias opressoras e pelos poderes demoníacos passam a ouvir a voz límpida de Deus que os impele à ação transformadora no seu mundo.

O Espírito de Deus ao atuar no Livro de Juízes acorda os oprimidos para a sua própria capacidade, sofrida pelas formas sofisticadas e poderosas das opressões sofridas pelo povo. O Espírito de Deus atua no meio de um povo acostumado a sofrer, a ser perdedor, a ser passivo diante das injustiças cometidas contra si. Neste processo de internalização dos mecanismos de opressão, as pessoas passaram a encarar a situação de perda e violência contra si como seu cotidiano normal, como uma dimensão corriqueira da vida que precisaria somente da sobrevivência estratégica e não das libertações integrais.

Esta ação do Espírito tem uma importância para os nossos dias, nos quais as pessoas parecem se acostumar cada vez mais com as formas bastante objetivas das barbáries sociais, econômicas e políticas de nossa realidade. Paulatinamente travestimos os absurdos de nossa realidade ou pelo sentimento de impotência que nos toma como agentes sociais ou pela sensação subjetivista e intimista de uma atmosfera de resignação social adornada de suspiros emotivos de uma vida sem rumo e utopias.

Neste contexto, o Espírito de Deus levanta guerreiros e profetisas, exemplificados em Gideão e Débora, para terem visões, sonharem os sonhos de um povo reunido e eficaz na luta contra as marcas objetivas das opressões e das injustiças. Liberta-nos da sobrevivência meramente pessoal, antissolidária e intimista e nos projeta para a vida do povo, seus dissabores, seu potencial, o alcance de sua força, seu poder de luta adormecido.

 

 

2.2. Do eixo hermenêutico cristológico-eclesiológico ao eixo pneumatológico-comunitário como base da pesquisa teológica do Segundo Testamento

Pelo espaço que temos no desenvolvimento de um artigo, não posso apresentar algo mais detalhado. O que faço aqui é somente apresentar as bases para uma investigação dos textos bíblicos.

Na introdução deste artigo comentei que há um deslocamento do eixo cristológico-eclesiológico para o eixo pneumatológico-comunitário. As bases metodológicas de leituras bíblicas sempre são determinadas pelas mudanças que o contexto religioso e cultural impõem àqueles que leem a Bíblia. Não é diferente em nossos dias. Hoje buscamos, como nunca antes, entender melhor a ação do Espírito apresentada na Bíblia e, a partir daí, desenvolver uma pneumatologia que mantenha sua relação com a cristologia e anime a vida de nossas comunidades de fé.     .

No primeiro eixo hermenêutico, no cristológico- eclesiológico, a figura de Cristo como Senhor, cabeça da igreja, e o centro da fé. O ponto de partida desta cristologia é dos atributos divinos e patronais de Cristo. O mais importante aqui é o senhorio, o poder, a ordem legitimada por um Cristo dos senhores. A visão aqui é, claramente, hierárquica, vertical. A concepção da igreja neste eixo é, por sua vez, a da igreja enquanto estrutura e tradição, passado e herança, organização burocrática e poder político, divisão rígida entre clero e laicato, magistério e povo, uma igreja do Cristo celestial para o mundo infernizado pelo pecado, mas não a comunidade de Jesus de Nazaré nas sendas do reino. Não é mais a igreja enquanto evento da fé na comunidade humana, mas como instância delimitadora dos comportamentos, definidora das práticas, depósito da salvação para os outros, mausoléu dos códigos morais. Esta junção de um Cristo hierárquico, patronal e de senhorio, com a igreja estrutura e continuação direta do ministério e da autoridade deste Cristo, deu origem a este eixo normativo, cristológico-eclesiológico, na teologia ocidental. Esta relação tem suas formas específicas de expressão dentro das tradições cristãs, conhecendo a ideia da igreja como sacramento da salvação e continuação ininterrupta do ministério de Cristo bem como a da igreja como intérprete absoluta dos mistérios da salvação. Neste eixo hermenêutico, a relação entre Cristo e igreja não se dá em termos de hermenêutica histórica e desafio missiológico permanente, mas em essencialização que desconhece ou relativiza as formas históricas que esta relação conheceu nos diversos períodos da história do cristianismo e da humanidade. Igreja se tornou, assim, extensão de Cristo não como desafio missiológico, mas como imposição ontológica e metafisica, mediada pela política cerceadora das estruturas de poder. O casamento do poder se dá, portanto, entre a essencialização religiosa e o estabelecimento do poder amparado pelos responsáveis pela instância política. É igreja sem carisma, mas repleta de ministérios hierarquicamente definidos.

Este eixo hermenêutico passa por uma crise estrutural. De um lado, percebeu-se que o Cristo enviado às culturas foi, em grande parte, produto de um processo colonizador ocidental e do expansionismo missionário que, muitas vezes, violentou simbolicamente e fisicamente as culturas e os povos. Além disto, as culturas mostraram uma resistência enorme, apesar de todas imposições sofridas, e criaram os seus rostos de Cristo. O exclusivismo europeu e anglo-saxão sofreram um baque por parte das diversas cristologias que foram surgindo nas culturas. Por outro lado, a igreja não ficou imune ao contato que ela passou a ter com as diversas culturas. Percebeu-se que o estilo europeu de igreja era anacrônico já em relação à própria Europa e, muito mais, em relação às culturas africanas, latino- americanas e asiáticas.[18] A dinâmica dos campos religiosos fez surgir diferentes igrejas e eclesiologias, colocou-se em xeque a visão unívoca da forma da igreja se estruturar, definir sua missão, estabelecer parâmetros para o seu anúncio, entender sua relação com Deus e com o conteúdo de sua mensagem. Cada vez mais se constatou que não tratamos somente da igreja, mas das igrejas e, por conseguinte, dos cristianismos.

Com tantas mudanças e tantos questionamentos, este eixo hermenêutico, cristológico-eclesiológico, foi sacudido não somente por mudanças cosméticas dentro do cristianismo, mas por transformações estruturais. Não existe um cristianismo, não existe uma igreja, e não existe uma única relação possível entre Cristo e a igreja. A esta pluralidade de possibilidades de relações e visões, constatou-se também que a igreja não tem mais o monopólio para falar de Cristo, pois ele pertence definitivamente às culturas, Dentre estas imagens aumentam o número daquelas que criam um Cristo a partir dos modelos enraizados nas culturas e o próprio universo conceitual europeu para nomear a cristologia vai sendo substituído por novos conceitos. Cristo como o melhor dos antepassados, na cultura africana, libertador e irmão, na teologia latino-americana, sábio ou personificação da energia vital, nas eclesiologias asiáticas, são alguns destes exemplos. Estas transformações não deixam de ter um caráter histórico irônico para o cristianismo ocidental, pois o pressuposto central de discurso em relação a si mesmo e ao outro foi sendo corroído no contato com as culturas dos povos que o modelo missionário europeu prometia transformar. Ir em direção ao outro é sempre uma tarefa arriscada no campo missionário. Mesmo que tenhamos o afã de transformar tudo, podemos ser, de forma paulatina e crescente, transformados pelos outros e teremos que, talvez, reconhecer que nossos paradigmas não servem sequer para nós mesmos. É que Deus, por assim, dizer chega sempre antes dos missionários e das missões nas culturas.

No eixo pneumatológico-comunitário a compreensão de igreja passa, especialmente, pela compreensão da eclesiologia enquanto comunidade-evento da fé em meio à sociedade humana. O que determina a eclesiologia não são as estruturas rígidas, a liturgia repetitiva, os códigos inflexíveis, mas o evento, a comunidade de decisão e compromisso, que renova as vidas e apresenta alternativas concretas à sociedade. A igreja hierarquia (estrutura do poder) do primeiro eixo é substituída pela igreja hierodoulia (estrutura do serviço) do segundo. A fonte para esta ação é o exemplo de Cristo, mas é também, de forma central, a ação distribuidora de dons do Espírito. Segundo a ação do Espírito, velhos sonham, jovens têm visões, escravos se tornam cheios do poder de Deus. Neste eixo, não há confronto entre a igreja da Palavra e a igreja dos sinais, entre ensino e poder, verdade e comprometimento, entre lei e cura.

 

 

Conclusão

O limite das páginas define, em grande parte, os limites de um projeto teológico. Pelo fato de ser um artigo, não podemos avançar em nossas considerações.

Deixo aqui estas observações introdutórias sobre o principal tema teológico na atualidade e dos próximos anos na história do cristianismo latino-americano. Tenho a profunda convicção que vivemos atualmente uma das maiores reformas da história de todo o cristianismo e esta reforma é do Espírito na vida das diversas comunidades cristãs de nosso continente. Sendo do Espírito ela permanece no amparo do Pai e no exemplo de Cristo. Ela não nega o ministério de Jesus Cristo entre nós, mas o amplia e aprofunda em nossa atual caminhada pelo Evangelho do Reino, um Evangelho que é mediado pela profundidade do ensino dos cristãos e pelos milagres do poder divino.

 

[1] Bacharel em Teologia pelo Seminário Teológico Batista do Norte do Brasil, Mestre em Teologia pela Universidade Metodista de São Paulo, Doutor em Teologia, Hamburgo (Alemanha) e professor da Faculdade de Teologia da Universidade Metodista de São Paulo.

 

 

[2] BARTH, Karl. Bosquejo de dogmática. Buenos Aires. Editorial “La Aurora”. 1954, p. 103. Para o comentário que empreendo nesta parte baseio-me em todo o comentário de Barth ao “centro” do credo, pp. 101-216.

[3] BARTH, Karl. Bosquejo de dogmática..., p. 102.

[4] BARTH, Karl. Bosquejo de dogmática...,p. 143.

[5] BARTH, Karl. Bosquejo de dogmática...,p. 205.

 

 

[6] BARTH, Karl. Bosquejo de dogmática...,p. 205.

[7] FIORENZA, Francis. S./GALVIN, John. P. Teologia Sistemática. Perspectivas católico-romanas. Vol. I e II. São Paulo. Ed. Paulus. 1997.

[8] TRACY, David. Tratado da compreensão cristã de Deus, in: FIORENZA, Francis. S./GAL VIN, John P. Op. cit., Vol. I, pp 183-84.

[9] Os textos são extraídos de BETTENSON, Henry (fed.). Documentos da Igreja Cristã. São Paulo. Aste/Simpósio. 1998, pp. 138 -139.

[10] WELKER, Michael. Gottes Geist. Theologie des Heiligen Geistes. Neukichen - Viuyn. Neukirchener. 1993, 2° edição, p. 12.

[11] CONGAR, Ives. Der Heilige Geist. Freiburgi. Br. 1982, pp, 20-28.

[12] Grande parte da reflexão de MOLTMANN, J. Gott in der Schöpfung. Ökologische Schöpfungslebre. München. Chr. Kaiser. 1987, se concentra nesta discussão e mostra muito bem a relação entre interpretações das narrativas bíblicas da criação e o tipo de pensamento ocidental baseado na relação assimétrica e de dominação entre sujeito e objeto.

[13] MÜLLER-FAHRENHOLZ, Geiko. God’s Spirit: Transforming a World in crisis. New York / Geneva. Continuum Publishing Company / WCC Publications. 1995, p. 8.

[14] MÜLLER-FAHRENHOLZ, Geiko. God’s Spirit: Transforming…, p. 14.

[15] MOLTMANN,J. Gott in der Schöpfung...,p. 27.

[16] Uma reflexão do fascinante sobre corporeidade você encontra em ASSMANN, Hugo. Paradigmas Educacionais e Corporeidade. Piracicaba. Editora Unimep. 1994.

[17] WELKER, Michael. Gottes Geist. Theologie des Heiligen Geistes. Neukichen - Viuyn. Neukirchener. 1993, 2° edição, p. 60.

[18] KAMPHAUSEN, Erhard. Despedir-se do Deus dos europeus? In: Epistême 02/01 -2000,pp. 73-88. Confira também SCHREITER, Robert J. Abschied vom Gott der Europäer. Zur Entwcklung regionaler Theologien. Salzburg. Verlag Anton Pustet. 1992.